domingo, 16 de março de 2008

A Picada da Escorpiana


Hábeis dedos singram

Os territórios brancos

Da folha que jaz sobre

As voluptuosas coxas

Da ninfeta-artista.


Seu olhar se interioriza

Vislumbrando seus desejos

Transmudados em fantasias.


Tais eloqüentes expressões

De impulsos criativos

Seduzem ao traçar

E afirmar a radiante

Compleição de sua’lma.

O Espetáculo do Capital


Debbord, junto com Althusser, talvez seja um dos teóricos neo-marxistas mais atuais e menos lidos oriundos do Maio de 68. Todos conhecem a expressão sociedade do espetáculo, mas poucos são os que leram sua obra mais conhecida. Em nossa sociedade da (des)informação e (in)cultura mercantis, seu pensamento é uma rara fonte de inteligibilidade do processo de produção de nossas subjetividades.
Guy nos mostra que na fase primitiva da acumulação capitalista, a economia política não enxergava no proletário senão o operário que deveria receber o mínimo indispensável para a conservação da sua força de trabalho, contudo, esta posição das idéias da classe dominante inverte-se assim que o grau de abundância atingido na produção das mercadorias exige um excedente de colaboração do operário. Este operário, subitamente lavado do desprezo total que lhe é claramente feito saber por todas as modalidades de organização e vigilância da produção, reencontra-se, a cada dia, quando fora desta, aparentemente tratado como uma grande pessoa, com uma delicadeza obsequiosa, sob o disfarce de consumidor.
O espetáculo, sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de entretenimento –, constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo. Forma e conteúdo do espetáculo são identicamente a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.
O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato de os seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória, caracterizando-se enquanto discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o auto-retrato do poder na época da sua gestão totalitária das condições de vida. A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares oculta a dinâmica das relações entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis nefastas.
O espetáculo, por conseguinte, apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que “o que aparece é bom e o que é bom aparece”. A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência garantido pelo investimento maciço no discurso que promete colar o desejo ao objeto, um objeto adequado para a aquisição de um gozo pleno, postergado sempre para um amanhã, que dá acesso à abertura desenfreada ao vasto campo da economia de mercado e do sucesso do marketing em nossa época. O objeto é transformado em seu valor de mercado na sociedade produtiva. O poderoso campo da propaganda monta armadilhas para atrair o desejo e assegurar um gozo sempre prometido para mais adiante. Em nossa época, essa possibilidade de salvação está associada ao aspecto econômico no qual a sexualidade também encontra seu suporte. Deposita-se sobre a economia toda a esperança de resolução dos impasses da vida.
Nesta sociedade, cada mercadoria luta por si própria, não pode reconhecer as outras, pretende impor-se em toda a parte como se fosse a única. É nesta luta cega que cada mercadoria, ao seguir a sua paixão, realiza, de fato, na inconsciência algo de mais elevado: o devir-mundo da mercadoria, que é também o devir-mercadoria do mundo. Assim, por uma astúcia da razão mercantil, o particular da mercadoria se gasta ao combater, enquanto a forma-mercadoria tende para a sua realização absoluta.
O sucesso desta produção, a sua abundância, regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo se lhe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos alienados. O espetáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que recobre exatamente o seu território. As próprias forças que nos escaparam mostram-se-nos em toda a sua pujança.
Das redes de publicidade-controle desliza-se insensivelmente para as redes de vigilância-desinformação. Antigamente, apenas se conspirava contra uma ordem estabelecida. Hoje conspirar a seu favor é uma nova profissão em grande desenvolvimento. Sob a dominação espetacular, conspira-se para a manter, e para assegurar aquilo que só ela poderá chamar o seu bom rumo. Esta conspiração faz parte do seu próprio funcionamento.
Cada país, sem fazer menção das numerosas alianças supranacionais, possui presentemente um numero indeterminado de serviços de polícia ou contra-espionagem, e de serviços secretos estatais ou para-estatais. Existem também muitas companhias privadas que se ocupam da vigilância, proteção e informação. As grandes firmas multinacionais têm naturalmente os seus próprios serviços, mas igualmente as empresas nacionalizadas, mesmo de dimensão modesta, não deixam de ter a sua política independente, no plano nacional e por vezes internacional.
Cada serviço de segurança de uma indústria particular combate a sabotagem no seu seio, e em caso de necessidade organiza-a no seu rival, de maneira que cada um desses organismos, confederados com muita flexibilidade à volta daqueles que têm a seu cargo a razão de Estado, aspira por conta própria a uma espécie de hegemonia privada de sentido. Pois o sentido perdeu-se com o centro conhecível.
A vigilância poderia ser muito mais perigosa se não tivesse sido empurrada, na via do controle absoluto de todos, até a um ponto onde ela encontra dificuldades resultantes dos seus próprios progressos. Há contradição entre a massa de informações recolhidas sobre um número crescente de indivíduos, e o tempo e a inteligência disponíveis para analisá-las; ou muito simplesmente o seu possível interesse. A abundância da matéria obriga a resumi-la a cada passo: muita coisa desaparece, e a restante é ainda demasiado extenso para ser analizado.
Porém, a vigilância e a manipulação não estão unificadas. Em todo o lado, com efeito, luta-se pela partilha dos benefícios; e, por conseguinte, também pelo desenvolvimento prioritário desta ou daquela virtualidade da sociedade existente, em detrimento de todas as suas outras virtualidades que, entretanto, são tidas por igualmente respeitáveis, contanto que sejam da mesma laia.
É a partir de tais condições do seu exercício que se pode falar de uma tendência para a decrescente rentabilidade do controle, à medida que este se aproxima da totalidade do espaço social, e que conseqüentemente aumenta o seu pessoal e os seus meios. Pois aqui cada meio aspira, e trabalha, por transformar-se num fim. A vigilância vigia-se a si própria e conspira contra ela mesma.
Da mesma maneira, muitos entre os políticos ou midiáticos que estão convencidos de que não se pode suspeitar deles como sendo levianos, conhecem muitas coisas pelas relações e pelas confidências. Aquele que se contenta em estar dentro da confidência, não é muito impelido a criticá-la; nem, portanto a reparar que, em todas as confidências, a parte principal da questão ser-lhe-á sempre escondida. Pela benevolente proteção dos trapaceiros, conhece umas poucas cartas mais, mas que podem ser falsas; e nunca o método que dirige e explica o jogo. Identifica-se, assim, em seguida com os manipuladores e despreza a ignorância que no fundo partilha.
As migalhas da informação oferecidas a estes familiares da tirania do diversionismo estão normalmente infectadas de mentira, incontroláveis, manipuladas: contudo, satisfazem aqueles que a elas acedem, porque se sentem superiores a todos os que não sabem nada. De resto, não valem senão para melhor fazer aceitar a dominação, e nunca para a compreender efetivamente. Tais migalhas constituem o privilégio dos espectadores de primeira classe: aqueles que têm a palermice de acreditar que podem compreender algo, não se servindo daquilo que se lhes esconde, mas acreditando naquilo que se lhes revela!
Em todo o lado onde reina o espetáculo, as únicas forças organizadas são aquelas que querem o espetáculo. Portanto, nenhuma pode ser inimiga do que existe, nem infringir a omertà que diz respeito a tudo. Acabou-se com a inquietante concepção que dominou durante mais de duzentos anos, segundo a qual uma sociedade podia ser criticável e transformável, reformada ou revolucionada. E isto não foi obtido pelo aparecimento de argumentos novos, mas muito simplesmente porque os argumentos se tornaram inúteis. Jamais a censura foi tão perfeita.
Mas o espetáculo não esconde que alguns perigos cercam a ordem maravilhosa que estabeleceu. Um hecatombe climático torna-se a cada dia mais inevitável devido à conduta extrativista predatória do capitalismo que exaure de forma definitiva os recursos naturais. O espetáculo conclui somente que isso não tem importância. Não quer discutir senão as datas e as doses. E somente com isto consegue tranqüilizar; o que para um espírito pré-espectacular seria tido por impossível.
É uma lástima que a sociedade humana enfrente problemas tão abrasadores no momento em que se tornou materialmente impossível fazer ouvir a mínima objeção ao discurso mercantil; no momento em que a dominação, precisamente porque está protegida pelo espetáculo de toda a réplica às suas decisões e justificações fragmentárias ou delirantes, crê que já não tem necessidade de pensar; e verdadeiramente já não sabe pensar.
A constatação, de que pela primeira vez se pode governar sem ter nenhum conhecimento histórico nem nenhum sentido do autêntico ou do impossível, poderia por si só bastar para se conjecturar que todos estes ingênuos patetas da economia e da administração vão provavelmente conduzir o mundo para uma grande catástrofe; se a sua prática efetiva não o tivesse demonstrado cabalmente.
É preciso, porém, acrescentar a esta lista de triunfos do capitalismo, um resultado para ele negativo: um Estado, em cuja gestão se instala duravelmente um grande déficit de conhecimentos históricos, já não pode ser conduzido estrategicamente.