domingo, 16 de março de 2008

A Picada da Escorpiana


Hábeis dedos singram

Os territórios brancos

Da folha que jaz sobre

As voluptuosas coxas

Da ninfeta-artista.


Seu olhar se interioriza

Vislumbrando seus desejos

Transmudados em fantasias.


Tais eloqüentes expressões

De impulsos criativos

Seduzem ao traçar

E afirmar a radiante

Compleição de sua’lma.

O Espetáculo do Capital


Debbord, junto com Althusser, talvez seja um dos teóricos neo-marxistas mais atuais e menos lidos oriundos do Maio de 68. Todos conhecem a expressão sociedade do espetáculo, mas poucos são os que leram sua obra mais conhecida. Em nossa sociedade da (des)informação e (in)cultura mercantis, seu pensamento é uma rara fonte de inteligibilidade do processo de produção de nossas subjetividades.
Guy nos mostra que na fase primitiva da acumulação capitalista, a economia política não enxergava no proletário senão o operário que deveria receber o mínimo indispensável para a conservação da sua força de trabalho, contudo, esta posição das idéias da classe dominante inverte-se assim que o grau de abundância atingido na produção das mercadorias exige um excedente de colaboração do operário. Este operário, subitamente lavado do desprezo total que lhe é claramente feito saber por todas as modalidades de organização e vigilância da produção, reencontra-se, a cada dia, quando fora desta, aparentemente tratado como uma grande pessoa, com uma delicadeza obsequiosa, sob o disfarce de consumidor.
O espetáculo, sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de entretenimento –, constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo. Forma e conteúdo do espetáculo são identicamente a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.
O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato de os seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória, caracterizando-se enquanto discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o auto-retrato do poder na época da sua gestão totalitária das condições de vida. A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares oculta a dinâmica das relações entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis nefastas.
O espetáculo, por conseguinte, apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que “o que aparece é bom e o que é bom aparece”. A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência garantido pelo investimento maciço no discurso que promete colar o desejo ao objeto, um objeto adequado para a aquisição de um gozo pleno, postergado sempre para um amanhã, que dá acesso à abertura desenfreada ao vasto campo da economia de mercado e do sucesso do marketing em nossa época. O objeto é transformado em seu valor de mercado na sociedade produtiva. O poderoso campo da propaganda monta armadilhas para atrair o desejo e assegurar um gozo sempre prometido para mais adiante. Em nossa época, essa possibilidade de salvação está associada ao aspecto econômico no qual a sexualidade também encontra seu suporte. Deposita-se sobre a economia toda a esperança de resolução dos impasses da vida.
Nesta sociedade, cada mercadoria luta por si própria, não pode reconhecer as outras, pretende impor-se em toda a parte como se fosse a única. É nesta luta cega que cada mercadoria, ao seguir a sua paixão, realiza, de fato, na inconsciência algo de mais elevado: o devir-mundo da mercadoria, que é também o devir-mercadoria do mundo. Assim, por uma astúcia da razão mercantil, o particular da mercadoria se gasta ao combater, enquanto a forma-mercadoria tende para a sua realização absoluta.
O sucesso desta produção, a sua abundância, regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo se lhe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos alienados. O espetáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que recobre exatamente o seu território. As próprias forças que nos escaparam mostram-se-nos em toda a sua pujança.
Das redes de publicidade-controle desliza-se insensivelmente para as redes de vigilância-desinformação. Antigamente, apenas se conspirava contra uma ordem estabelecida. Hoje conspirar a seu favor é uma nova profissão em grande desenvolvimento. Sob a dominação espetacular, conspira-se para a manter, e para assegurar aquilo que só ela poderá chamar o seu bom rumo. Esta conspiração faz parte do seu próprio funcionamento.
Cada país, sem fazer menção das numerosas alianças supranacionais, possui presentemente um numero indeterminado de serviços de polícia ou contra-espionagem, e de serviços secretos estatais ou para-estatais. Existem também muitas companhias privadas que se ocupam da vigilância, proteção e informação. As grandes firmas multinacionais têm naturalmente os seus próprios serviços, mas igualmente as empresas nacionalizadas, mesmo de dimensão modesta, não deixam de ter a sua política independente, no plano nacional e por vezes internacional.
Cada serviço de segurança de uma indústria particular combate a sabotagem no seu seio, e em caso de necessidade organiza-a no seu rival, de maneira que cada um desses organismos, confederados com muita flexibilidade à volta daqueles que têm a seu cargo a razão de Estado, aspira por conta própria a uma espécie de hegemonia privada de sentido. Pois o sentido perdeu-se com o centro conhecível.
A vigilância poderia ser muito mais perigosa se não tivesse sido empurrada, na via do controle absoluto de todos, até a um ponto onde ela encontra dificuldades resultantes dos seus próprios progressos. Há contradição entre a massa de informações recolhidas sobre um número crescente de indivíduos, e o tempo e a inteligência disponíveis para analisá-las; ou muito simplesmente o seu possível interesse. A abundância da matéria obriga a resumi-la a cada passo: muita coisa desaparece, e a restante é ainda demasiado extenso para ser analizado.
Porém, a vigilância e a manipulação não estão unificadas. Em todo o lado, com efeito, luta-se pela partilha dos benefícios; e, por conseguinte, também pelo desenvolvimento prioritário desta ou daquela virtualidade da sociedade existente, em detrimento de todas as suas outras virtualidades que, entretanto, são tidas por igualmente respeitáveis, contanto que sejam da mesma laia.
É a partir de tais condições do seu exercício que se pode falar de uma tendência para a decrescente rentabilidade do controle, à medida que este se aproxima da totalidade do espaço social, e que conseqüentemente aumenta o seu pessoal e os seus meios. Pois aqui cada meio aspira, e trabalha, por transformar-se num fim. A vigilância vigia-se a si própria e conspira contra ela mesma.
Da mesma maneira, muitos entre os políticos ou midiáticos que estão convencidos de que não se pode suspeitar deles como sendo levianos, conhecem muitas coisas pelas relações e pelas confidências. Aquele que se contenta em estar dentro da confidência, não é muito impelido a criticá-la; nem, portanto a reparar que, em todas as confidências, a parte principal da questão ser-lhe-á sempre escondida. Pela benevolente proteção dos trapaceiros, conhece umas poucas cartas mais, mas que podem ser falsas; e nunca o método que dirige e explica o jogo. Identifica-se, assim, em seguida com os manipuladores e despreza a ignorância que no fundo partilha.
As migalhas da informação oferecidas a estes familiares da tirania do diversionismo estão normalmente infectadas de mentira, incontroláveis, manipuladas: contudo, satisfazem aqueles que a elas acedem, porque se sentem superiores a todos os que não sabem nada. De resto, não valem senão para melhor fazer aceitar a dominação, e nunca para a compreender efetivamente. Tais migalhas constituem o privilégio dos espectadores de primeira classe: aqueles que têm a palermice de acreditar que podem compreender algo, não se servindo daquilo que se lhes esconde, mas acreditando naquilo que se lhes revela!
Em todo o lado onde reina o espetáculo, as únicas forças organizadas são aquelas que querem o espetáculo. Portanto, nenhuma pode ser inimiga do que existe, nem infringir a omertà que diz respeito a tudo. Acabou-se com a inquietante concepção que dominou durante mais de duzentos anos, segundo a qual uma sociedade podia ser criticável e transformável, reformada ou revolucionada. E isto não foi obtido pelo aparecimento de argumentos novos, mas muito simplesmente porque os argumentos se tornaram inúteis. Jamais a censura foi tão perfeita.
Mas o espetáculo não esconde que alguns perigos cercam a ordem maravilhosa que estabeleceu. Um hecatombe climático torna-se a cada dia mais inevitável devido à conduta extrativista predatória do capitalismo que exaure de forma definitiva os recursos naturais. O espetáculo conclui somente que isso não tem importância. Não quer discutir senão as datas e as doses. E somente com isto consegue tranqüilizar; o que para um espírito pré-espectacular seria tido por impossível.
É uma lástima que a sociedade humana enfrente problemas tão abrasadores no momento em que se tornou materialmente impossível fazer ouvir a mínima objeção ao discurso mercantil; no momento em que a dominação, precisamente porque está protegida pelo espetáculo de toda a réplica às suas decisões e justificações fragmentárias ou delirantes, crê que já não tem necessidade de pensar; e verdadeiramente já não sabe pensar.
A constatação, de que pela primeira vez se pode governar sem ter nenhum conhecimento histórico nem nenhum sentido do autêntico ou do impossível, poderia por si só bastar para se conjecturar que todos estes ingênuos patetas da economia e da administração vão provavelmente conduzir o mundo para uma grande catástrofe; se a sua prática efetiva não o tivesse demonstrado cabalmente.
É preciso, porém, acrescentar a esta lista de triunfos do capitalismo, um resultado para ele negativo: um Estado, em cuja gestão se instala duravelmente um grande déficit de conhecimentos históricos, já não pode ser conduzido estrategicamente.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

As Artesãs


Saboroso dia de contemplação

De suaves e exatos movimentos

Que enfeitiçam.


Encantador estado de desfrute

De plenos momentos de criação.


Nessa atmosfera de feminilidade

Exalada por inspiradas obras

E artífices em seu sereno labor,

Torno-me personagem

E não criador.

Vontade de Poder e Biologia do Conhecer


A vontade de poder está presente nos numerosos seres vivos microscópicos que formam o corpo, na medida em que cada um deles quer prevalecer na relação com os demais. Encontra-se, pois, em todo ser vivo, espalhada no organismo, atuando nos diminutos elementos que o constituem. Assim deixa de ter sentido, em termos fisiológicos, a idéia de um aparelho neurocerebral responsável pelo querer, pois todas as formas orgânicas tomam parte não só no querer, mas no sentir e no pensar – o cérebro é apenas um enorme aparelho de centralização. A relação entre eles é de tal ordem que, no querer, já se acham embutidos o sentir e o pensar, de modo que pensamento, sentimento e vontade aparecem como indissociáveis. Contudo, Nietzsche não se limita a afirmar que os processos psicológicos têm base neurofisiológica; procura, antes, suprimir a distinção entre fisiologia e psicologia.
E, se do ponto de vista fisiológico, deixa de ter sentido a idéia de um aparelho neurocerebral responsável pelo querer, tampouco faz sentido, em termos filosóficos, considerar a vontade uma faculdade do homem, ao lado de outras como a imaginação, o entendimento ou a razão. Ao ser humano não é facultado exercer ou não a vontade; ela não apresenta caráter intencional algum.
As ciências da cognição e as neurociências com suas explorações empíricas da mente humana constatam, de forma irrefutável, a ausência de um centro metadecisor localizado no cérebro ao qual se possa atribuir a responsabilidade pela consciência ou pela consistência ontológica de um sujeito do conhecimento. O cérebro começa a se preparar para iniciar uma ação mais que três décimos de segundo antes de decidirmos conscientemente agir, por isso, pesar das aparências, não é a mente consciente que decide desempenhar uma ação: a decisão é tomada inconscientemente.
O sujeito, assim como o sentido de si e, principalmente, a consciência, são resultados emergentes de processos que operam também em contextos bem localizados no tecido social. O sujeito que conhece é o resultado de formações históricas e sociais, emerge, portanto, de um conjunto de regras e relações que operam em seu corpo e o fazem existir como sujeito do conhecimento.
O sentido de si, conseqüentemente, emerge das formas, das regras, dos jogos de verdade, de estratégias e forças a operar sem intencionalidade, sem finalidade e sem sentido. Um suposto sentido que o observador enxerga no sentido de si emerge de um operar maquinal de forças sem nenhuma intenção. O mesmo vale para o sistema nervoso, que é uma máquina a executar, sem intenções, sem finalidades (sem elaborar representações) operações determinadas pela sua organização enquanto sistema auto-engendrante e auto-referencial.
Isso, porque o que chamamos de centro funcional coloca em jogo não uma localização, mas a repartição de toda uma população de neurônios selecionados no conjunto do sistema nervoso central, como numa "rede de fiação". Conseqüentemente, no conjunto deste sistema considerado por si mesmo (experiências em que as vias aferentes são seccionadas), falar-se-á menos do automatismo de um centro superior do que de coordenação entre centros, e de agrupamentos celulares ou de populações moleculares operando estas conexões: não há uma forma ou uma boa estrutura que se impõe, nem de fora nem de cima, mas antes uma articulação de dentro, como se moléculas oscilantes, passassem de um centro heterogêneo a outro para assegurar a dominância de um deles. Isso exclui evidentemente a relação linear de um centro com o outro, em proveito de pacotes de relações pilotadas pelas moléculas.
O funcionamento do sistema nervoso é, destarte, a expressão de sua estrutura de conexões – o comportamento surge de acordo com o modo como se articulam no organismo suas relações internas de atividade, uma vez que o comportamento dos seres vivos não é uma invenção do sistema nervoso e não está exclusivamente ligado a ele. O que a presença do sistema nervoso faz é expandir o domínio de condutas possíveis ao dotar o organismo de uma estrutura consideravelmente versátil e plástica.
A arquitetura fundamental do sistema nervoso é universal, o que se diferencia é a forma como a rede geradora de correlações sensório-motoras se implementa, pois os neurônios e conexões variam de uma espécie animal para outra. É em referência aos organismos móveis – não só baseiam sua reprodução no movimento, como também sua alimentação e modos de interação com o meio – que o sistema nervoso adquire importância. Ele, como parte que é de um organismo, funciona com determinação estrutural. Portanto, os estados de atividade neuronal deflagrados por diferentes perturbações estão determinados em cada pessoa por sua estrutura individual, e não pelas características do agente perturbador.
É por meio de sua presença física que os neurônios acoplam, de muitos modos distintos, grupos celulares que de outra maneira só poderiam acoplar-se pela circulação geral dos humores internos do organismo. A presença física de um neurônio permite o transporte de substâncias entre duas regiões por meio de um caminho muito específico, que não afeta as células circundantes e sua entrega local. A cada momento, o sistema nervoso está funcionando segundo múltiplos ciclos internos de interações neuronais numa mutação incessante. Essa incomensurável atividade é superposta e modulada pelas modificações na superfície sensorial devido a perturbações que são independentes do organismo – as estruturas estão numa relação de efeito mútuo e não de simples seqüencialidade.
Deste modo, o sistema nervoso no que se refere à sua organização é dotado de uma clausura operacional (está constituído de tal maneira que quaisquer que sejam suas mudanças, estas geram outras modificações dentro dele mesmo). Daí se segue que todo conhecer é fazer, com correlações sensório-efetoras nos domínios de acoplamento estrutural em que existe o sistema nervoso. Desse modo, o ambiente não é algo independente do ser vivo ou algo pré-determinado, e sim um background para fatores intrínsecos. E, conseqüentemente, não pode ser compreendido independentemente da ontogênese dos organismos.
O processo do conhecer é caracterizado por uma perspectivação contínua que não pode ser adequadamente fechada num conjunto de regras e de pressupostos, pois depende da ação e do histórico de interações; é um mundo de significados de que nos apoderamos por imitação e que se torna parte integrante do nosso mundo preexistente. Mais ainda, não podemos nos excluir do mundo para comparar o seu conteúdo com as suas representações em razão de estarmos imersos nele. Assim sendo, a mente que observa o mundo, atua nele de modo que determina a própria observação. E é por isso que não se vai achar o sentido de si nos estados mentais ou nas possíveis conexões entre estados cerebrais e estados mentais. Ele não está lá porque ele não existe lá. Ele existe incorporado no mundo, atuante no mundo, emergente pelo mundo – em seu mundo.
A mente (singularização do cérebro) é, por conseguinte, um aspecto da interação entre a pessoa e o ambiente, de tal maneira que, no ato de conhecer algo, nem o objeto conhecido, nem sua descrição simbólica podem ser especificados à margem do próprio processo de conhecer e das conclusões a que chegamos de tal processo. A cognição desdobra-se entre a mente, o corpo, a atividade e os ambientes organizados culturalmente. Já a consciência é distribuída entre os cérebros e os ambientes físicos e simbólicos – tanto naturais como artificiais.

Em suma, estes são os fatos apurados pelas ciências da cognição:

1. Todas as variedades de pensamentos e atividades mentais são cumpridas no cérebro por processos de processamento de informação paralelos e distribuídos.
2. A informação que circula no sistema nervoso está sob contínua revisão editorial.
3. Nós (o suposto centro metadecisor) não experienciamos diretamente o que fisicamente acontece nas terminações sensoriais do sistema nervoso, mas o resultado destes processos editoriais.

Porém, estes fatos consensuais são normalmente seguidos de más assunções tácitas:

1. A idéia de que basta um conteúdo ter sido discriminado para ter que definitivamente entrar no medium da consciência (como se a discriminação de conteúdo fosse necessariamente precursora da re-apresentação do conteúdo discriminado à consideração de um “discriminador central”).
Contudo, uma larga parte da base da consciência é pré-reflexiva, não-conceitual, pré-noética e afetiva, uma vez que o volume de informação que o cérebro assimila enquanto interagimos com o mundo é ínfimo, todo o resto sendo formado de informações que o próprio cérebro fornece para preencher as lacunas da percepção.

2. A idéia de que as propriedades temporais dos estados discriminativos (que são determináveis no cérebro) gerariam as propriedades temporais das experiências subjetivas.
Todavia, é sempre uma questão em aberto saber se um conteúdo cognitivo que foi fixado virá a ser consciente. Por isso é mistificador perguntar quando é que ele se torna consciente e enganoso supor que a ordem temporal da discriminação é o que fixa a ordem subjetiva na experiência.
Se pensarmos, vemos que o motivo idealista é normalmente espacializado: o ‘interior’ solipsista é precisamente uma espacialização. Mas o hipotético solipsista pensaria ainda temporalmente (estaria desligado da fisicalidade enquanto espacialidade, mas não da temporalidade, que seria então “primeira” na consciência). É indesmentível que nos é mais fácil admitir que o espaço no cérebro (os neurônios do meu córtex visual) representa o espaço fora do cérebro (esta sala, espaço-representado, que é obviamente outro em relação ao espaço da representação) do que pensar assim em relação ao tempo. Nós temos antes a inclinação a pensar que tempo só pode ser representado com tempo – não pensamos que há algo colorido no cérebro que representa cores, nem que há algo sonoro que representa sons, mas facilmente ajuizamos que só tempo pode representar tempo.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Doce Êxtase


Tudo é tão claro; não há motivos
Para quaisquer apreensões.
Tudo foi dito; tudo é livre,
Tudo flui e tudo não é
Como se havia previsto,
Pois tudo se transmuta
A todo momento.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

A Sexualidade na Contemporaneidade


As paixões tornam-se más e pérfidas quando são consideradas más e pérfidas. Desse modo, o cristianismo conseguiu transformar Eros e Afrodite – grandes poderes passíveis de idealização – em espíritos e gênios infernais, mediante os tormentos que fez surgir na consciência dos crentes quando há excitação sexual. Não é algo terrível transformar sensações regulares e necessárias em fonte de miséria interior, e assim pretender tornar a miséria interior, em cada pessoa, algo regular e necessário? Nietzsche - Aurora, p.59


Por fim, essa demonização de Eros teve um desfecho de comédia: o “demônio” Eros veio a se tornar mais interessante, para as pessoas, do que todos os anjos e santos, graças ao murmúrio e sigilo da Igreja nas coisas eróticas: seu efeito até em nossa época, foi tornar a história de amor o único verdadeiro interesse comum a todos os círculos – num exagero incompreensível para a Antiguidade, e que um dia dará lugar à risada. Nietzsche - Aurora, p.60


"O cristianismo perverteu a Eros; este não morreu, mas degenerou-se, tornou-se um vício." Nietzsche - Para Além do Bem e do Mal, p.76



Apesar da revolução sexual dos anos 60 (devemos ter em mente que a década de 20 nos Estados Unidos também foi de grande liberdade até a Grande Depressão), que se insere num processo sócio-político mais amplo, mas que teve no feminismo (primeiro movimento social a colocar em pauta as questões de gênero) seu grande propulsor (sem a libertação das mulheres não seria possível a transformação na sexualidade), ter se degenerado em razão do princípio do desempenho (Marcuse, Eros e a Civilização) que se mostra cada vez mais forte na Civilização Ocidental, penso que ainda há espaço para uma mudança de paradigma.

Na atualidade, a vivência da sexualidade está muito ligada expectativas irreais de performance (alimentadas pela mídia por razões mercantis), pela reprodução das relações comerciais (relacionamentos tópicos e funcionais) e uma aguda genitalização (em detrimento do resto do corpo). Não há uma entrega genuína, um interesse no aprofundamento dos vínculos. Grande parte das pessoas vive numa velocidade que impede qualquer estabilidade e por conseguinte, a possibilidade de uma intensa experiência sexual com o outro.

Porém, essas mesmas pessoas, na maior parte das vezes, nutrem fantasias românticas ideais (parceiros perfeitos e relacionamentos sem conflitos), e isso aliado à incapacidade de lidar com frustrações e o temor do compromisso é que as impedem de conseguir parcerias reais e satisfatórias. Enfim, parafraseando Platão, “muitos empunham o tirso, mas poucos são os bacantes”.

Evoé, Baco!



Intróito


Furor indômito, obscuro,
Discípulo do sábio Sileno,
Rebento de Zeus soberano;
Tu afrontaste toda moral
E rompeste todo grilhão.

Adoração plena do êxtase,
Manifestação do excesso
E essência do sublime.

Sentimento de irrestrita
Afirmação e absoluta
Desindividuação.

Louvado seja!!!


Rapsódia I

Rasgo a lúgubre noite
Que adornada pela lua
Opulenta e sangüínea,
Evoca sonhos esquecidos
Enchendo-me de excitação
E expectativa acerca do porvir.

Adentro uma exuberante ermida
Onde brumas irrompem lentamente
E inicio o extático e lisérgico rito
Envolvendo ervas e cogumelos.

Distante do Ideal Ascético
E da insídia do Ressentimento,
Bem como da Má-Consciência,
Maximizo meus sentidos
Tornando meu organismo
Substrato da Sexualidade
E concomitantemente,
Provocando uma postura
Subversiva e erótica
Contra a sobre- repressão.


Rapsódia II

Respondo ao irresistível clamor
Que do limiar do Real com o Simbólico
Testa minha aspiração pelo infinito
Abrindo as portas da percepção
E demandando a asserção
Absoluta e extática da Vida,
Imergindo-me na transversalidade
Constitutiva dos acontecimentos
Ao tornar o ato de conhecer
Um processo semiótico contínuo.

Destarte, vivo a sina de Prometeu
Ao vergastar o delírio metafísico
Infundindo eloqüente ilustração
Aos domínios do Inconsciente.

Por fim, farto do Status Quo,
Vivo, exultante, a morte Dele
E num paroxismo de Prazer,
Faço da crença, Suspeição,
Do maniqueísmo, Diversidade
E do ilusório espírito, Corpo.


Rapsódia III


Altipotentes e fecundos impulsos
De superação, domínio e expansão;
Sois antídoto ao veneno do niilismo
Por induzir ao limite meu poder.

Exerço, de tal modo, o Desejo,
Que este, rumo à transvaloração,
Enriquece e liberta meus juízos
Abismados em inúteis aporias
E, num genuíno fenomenalismo,
Perspectivo tudo o que alcanço.

Por fim, domestico meus demônios
Ao potencializar minha Vontade,
Que, soberana, feroz e intrépida,
Escapa do suplício de Tântalo
Imergindo-me na pura imanência
De uma experimental e empírica
Arqueologia de sentidos e valores,
Engendrando um entendimento
Profundo, intenso e materialista
Da inescapável tragédia humana.

Heráclito e o Devir


As datas do nascimento e da morte de Heráclito são desconhecidas. Sabe-se, porém, que atingiu o acme de sua existência na época da 69a. Olimpíada, entre 504 e 500 a.C. Isto é suficiente para situá-lo uma geração após Xenófanes, ao qual se opôs, e uma geração antes de Parmênides, o seu principal opositor. De sua vida, pouco se conhece; supõe-se que tenha pertencido à aristocracia de Éfeso e que seus antepassados foram os fundadores da cidade. Mas parece que Heráclito abdicou dos seus direitos de participar do governo da cidade. Chamavam-no de orgulhoso, pois desprezava seus concidadãos e levava uma vida à parte. (BORNHEIM, 1998;p. 35)


Foi o desenvolvimento da filologia no século XIX que trouxe de volta, com vigor extraordinário, a palavra de Heráclito. Voltado para o estudo dos grandes tragediólogos, Nietzsche reencontra, em seus estudos clássicos, os "pré-socráticos". Compreendeu - à luz de um saber lingüístico incomparável - o quanto as traduções traíram o pensamento de Heráclito e de outros pensadores inaugurais, e quão impossível era continuar aceitando a visão tradicional. Filólogo e filósofo, ele reunia as raras condições que lhe permitiram repensar a cultura ocidental e denunciar o indevido predomínio da racionalidade platônico-aristotélica inserida nos dogmas cristãos.
No começo do século XX, um outro helenista, Hermann Diels, através de um hercúleo esforço de pesquisa filológica, reuniu extensa documentação e publicou uma obra de peso: Os Fragmentos Pré-Socráticos. Um clássico indispensável que provocou uma enorme quantidade de estudos sobre os primeiros pensadores.
Estes famosos fragmentos de Heráclito são cento e vinte e seis frases, fulgurantes como relâmpagos, cortantes como uma navalha. Não são pedaços retirados de um texto linear. Nasceram - sobre isto a crítica hoje concorda - sob a forma de aforismos.

O dom real de Heráclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e hostil para com o outro modo de representação que se efetiva em conceitos e combinações lógicas, portanto, para a razão, e parece ter prazer em poder contradizê-la com alguma verdade alcançada por intuição [...] (NIETZSCHE, 1995;p. 19)

Heráclito marca a separação de duas eras fundamentais. Ele é o movimento de transição entre a filosofia jônica da natureza e a teoria anaxagórica do nous, que dá início à separação entre corpo e alma.
Seu discurso é como um jogo de luz e sombras que não cabe em uma linguagem simplória, exigindo de Heráclito os atritos verbais com que tentou dar testemunho das contradições das coisas mesmas, sua conjuntura, seu equilíbrio imanente, feito de tensões, que é luta e harmonia ao mesmo tempo. No seu entender as transformações se dão segundo medidas e está ao alcance do homem captá-las. Por esse motivo, conceder à razão a possibilidade de conhecer o que se transforma é conceber uma racionalidade também dinâmica, daí sua dialética paradoxal.
A lógica formal distingue duas formas de oposição de conceitos, ora como contrários (branco e negro), ora como contraditórios (branco e não-branco). Heráclito não trabalha com esse modelo, ele trabalha com a harmonia e não identidade entre contrários. Apesar de surgir algo como uma “unidade”, as oposições não se dissolvem, elas sobrevivem enquanto tal, mantendo-se o conflito e a negação. Esse movimento dos opostos cria uma hierarquia, e esta, configura uma ordem.
Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos lutadores, mas não põem termo à guerra: a luta persiste pela eternidade afora. Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna. (NIETZSCHE, 1995;p. 21)


Logos é filho de Éris; sobre esta figura da mitologia grega Brandão (1993) afirma: Éris é, em princípio, “o ardor no combate, a luta, a disputa, a querela, a rivalidade, a discórdia”. Aparece já personificada em Homero e Hesíodo.” (1993;p.355)
Sendo o Logos da linhagem de Éris, podemos dizer que o discurso (significado literal da palavra grega) é fruto da disputa, da luta, do combate. Essa propriedade paradoxal – o discurso como fruto da disputa – é da ordem da condição humana. Aludimos ao fato de que o logos grego passa pelo debate, pela argumentação, assim como o experimentavam na democracia grega. Assuntos comuns são tratados no debate, a batalha de palavras que gera o bem comum. O discurso sustenta, congrega, une, critica, vigia, reina. É a condição sine qua non para a existência da democracia: o reconhecimento de que nenhum dos cidadãos possui a verdade, pois de posse dela o debate desvaneceria, uma vez que este é a busca pela concórdia.
Logos não se contrapõe a physis, como mais tarde o pensamento se oporá à natureza, o sujeito aos objetos, em busca da objetividade do conhecimento. Em Heráclito, assim como os outros filósofos inaugurais, Physis representa a realidade subjacente às coisas de nossa experiência, indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desabrochar que surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Em nossos dias, a natureza se contrapõe ao psíquico. Mas para os gregos, o psíquico também pertence à physis. Esta sua importante dimensão pode ser mais bem compreendida a partir de sua gênese mitológica, pois os deuses gregos não são entidades transcendentes, e sim, parte integrante da natureza, exteriorizações magnificadas das peculiaridades do altivo povo grego.
Logos significa uma reunião de coisas sob determinado critério. Ele não se restringe, entretanto, à ordenação dos fenômenos, mas estende vínculos, com o mesmo vigor, entre palavras. Surge assim o discurso verbal. Sem logos não há discurso; há, quando muito, amontoado caótico de palavras. Sem o discurso verbal, estaríamos desamparados de recursos para nos referir ao logos.


É sábio que os que ouviram, não a mim, mas as minhas palavras (logos), reconheçam que todas as coisas são um. (HERÁCLITO, frag.50)

Aqui estão as bases do pensamento de Heráclito. Neste fragmento afirmam-se pelo menos três grandes princípios. Em primeiro lugar, vem a primazia da escuta como forma de definição do humano: nada se ouve sem decisão de ouvir. Ficar atento a discursos sedutores é cômodo. Perceber os movimentos do logos, que age no silêncio, no espaço que se interpõe entre as palavras, que atua no conflito, que reúne - requer atenção de despertos. Sendo invisível, ele se dirige aos ouvidos. Mas o que é que ele diz? Diz a ordem, o encaixe, a aproximação, a harmonia das partes, diz que todas as coisas constituem uma multiplicidade cambiante e concordante.
É preciso, para escutar, ir além da identificação dos sons, recolhendo os significados do discurso e pondo diante de si a trama de sentidos que emana imediatamente do ato. Todas as tentativas futuras de recuperação serão infiéis, artificiais, forçadas e forjadas, exercício a posteriori de se refazer algo que já não está ocorrendo. Por isso, a interpretação será sempre trabalho sobre um resíduo instalado, enquanto que a vivência é apreensão e experimentação do logos.
Ouvir ao logos nada tem de cartesianismo. Se escutarmos o “eu”, daremos ouvidos ao mundo enganoso de suas falsas impressões e tumultuados anseios. É a esta audição equivocada à qual Heráclito diz “não”. Esse modo de escuta acaba por constituir o ruído que ensurdece o homem para a escuta do logos. Mas se o homem calar a interferência do “eu”, poderá ouvir o que o logos lhe diz.
Em segundo lugar, temos a primazia do dizer do logos e não do dizer do filósofo ou de um eu subjetivo. É ao logos enquanto sabedoria da natureza que devemos dar ouvidos e não à opinião dos homens; deve-se escutar, observar e analisar a natureza e não as idiossincrasias de um eu enunciador.
O logos profere-se a si mesmo. Ainda que esquecido, desprezado ou ignorado, ele governa. Articulado em nós e fora de nós, nele vivemos e convivemos. Ninguém ignora de todo. A mera informação dos sentidos, embora precária, ainda é saber. Todo saber, contudo, está mesclado de não-saber. Enquanto percorremos o caminho do conhecimento simultaneamente enveredamos pelo descaminho do sujeito e proferimos estes discursos parciais, necessários por serem eles que nos mantêm em marcha; precários, porque o não-dito supera em muito o que se diz.
O saber separa-se por sua própria natureza, assegurando que não é coisa entre coisas, nem coisa além das coisas. Não sendo coisa, ele arma relações entre as coisas, indica a função das palavras na sintaxe. É coesão, sentido não-substancial do que aparece.
Em terceiro lugar, vem a primazia do uno, de modo que ao se escutar esse dizer do logos, é sábio concordar (homologar) e buscar a unidade para compreender a coerência subjacente expressa no logos como princípio unificador.
Para Heráclito, tal unidade é projeção de uma escuta e construção de um dizer. A rigor, o que aparece são apenas índices, e o Todo, o Uno, a harmonia, não passam da união de elementos ocultos que vamos desvelando na escuta. A coerência, a harmonia e as relações de sentido não são dadas na superfície e sim no escutar. Não somos lineares por natureza, não somos uma seqüência de racionalidade nem somos explicitude. Contudo, é nessa diversidade de modos de ser que nos constituímos como unidade simbólica.
Assim, o logos é tanto unidade como multiplicidade e este é seu caráter essencial: a convergência de muitos cursos, a sobreposição de correntes, que ao discorrerem, convergem e divergem no fluir que se refaz.
Outro aspecto central na filosofia de Heráclito é a idéia contida no fragmento 54, que nos diz: “A harmonia invisível é mais forte que a visível.”
Com isto, torna-se patente que a unidade das coisas se dá sob a superfície e não se acha visível. É fruto da escuta do logos oculto. Para ser bem entendido, o fragmento 54 deve ser interpretado na relação com o fragmento 123 que diz: “A natureza ama esconder-se”. Pois esta tende ao encobrimento e furta-se à evidência imediata.
O invisível faz parte dessa epistemologia da mesma forma que o visível, ou seja, é preciso ver as coisas e o vazio entre as coisas. A vista nos engana quando ela se liga de forma demasiadamente estreita àquilo que é diretamente visível, impedindo-nos de enxergar. Pois o horizonte do visível permanece invisível e o visível não passa de um fragmento do invisível, embora seja através do visível que o invisível se presentifica.
Isso não deve levar ao equívoco de entender Heráclito como um autor estruturalista, pois o estruturalismo não somente privilegia o invisível (as estruturas inconscientes) mas, pura e simplesmente, ignora o visível. Para o estruturalismo, a estrutura é determinante (causalidade estrutural), enquanto que para Heráclito, se há uma determinação ela está no fogo, que é antes uma “força motriz”, jamais um plano inconsciente. Além do mais, o estruturalismo contém implícita uma metafísica, um significado transcendental, visto que seu centro está fora do campo. Heráclito não considera nenhum significado transcendental, como pode ser visto no fragmento 45: “Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu Logos”. Ele, diferentemente do estruturalismo, transcende o campo reduzido da linguagem e caminha na direção do inapreensível ao falar na captura do instável e na potência do invisível para produzir o movimento.