quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Vontade de Poder e Biologia do Conhecer


A vontade de poder está presente nos numerosos seres vivos microscópicos que formam o corpo, na medida em que cada um deles quer prevalecer na relação com os demais. Encontra-se, pois, em todo ser vivo, espalhada no organismo, atuando nos diminutos elementos que o constituem. Assim deixa de ter sentido, em termos fisiológicos, a idéia de um aparelho neurocerebral responsável pelo querer, pois todas as formas orgânicas tomam parte não só no querer, mas no sentir e no pensar – o cérebro é apenas um enorme aparelho de centralização. A relação entre eles é de tal ordem que, no querer, já se acham embutidos o sentir e o pensar, de modo que pensamento, sentimento e vontade aparecem como indissociáveis. Contudo, Nietzsche não se limita a afirmar que os processos psicológicos têm base neurofisiológica; procura, antes, suprimir a distinção entre fisiologia e psicologia.
E, se do ponto de vista fisiológico, deixa de ter sentido a idéia de um aparelho neurocerebral responsável pelo querer, tampouco faz sentido, em termos filosóficos, considerar a vontade uma faculdade do homem, ao lado de outras como a imaginação, o entendimento ou a razão. Ao ser humano não é facultado exercer ou não a vontade; ela não apresenta caráter intencional algum.
As ciências da cognição e as neurociências com suas explorações empíricas da mente humana constatam, de forma irrefutável, a ausência de um centro metadecisor localizado no cérebro ao qual se possa atribuir a responsabilidade pela consciência ou pela consistência ontológica de um sujeito do conhecimento. O cérebro começa a se preparar para iniciar uma ação mais que três décimos de segundo antes de decidirmos conscientemente agir, por isso, pesar das aparências, não é a mente consciente que decide desempenhar uma ação: a decisão é tomada inconscientemente.
O sujeito, assim como o sentido de si e, principalmente, a consciência, são resultados emergentes de processos que operam também em contextos bem localizados no tecido social. O sujeito que conhece é o resultado de formações históricas e sociais, emerge, portanto, de um conjunto de regras e relações que operam em seu corpo e o fazem existir como sujeito do conhecimento.
O sentido de si, conseqüentemente, emerge das formas, das regras, dos jogos de verdade, de estratégias e forças a operar sem intencionalidade, sem finalidade e sem sentido. Um suposto sentido que o observador enxerga no sentido de si emerge de um operar maquinal de forças sem nenhuma intenção. O mesmo vale para o sistema nervoso, que é uma máquina a executar, sem intenções, sem finalidades (sem elaborar representações) operações determinadas pela sua organização enquanto sistema auto-engendrante e auto-referencial.
Isso, porque o que chamamos de centro funcional coloca em jogo não uma localização, mas a repartição de toda uma população de neurônios selecionados no conjunto do sistema nervoso central, como numa "rede de fiação". Conseqüentemente, no conjunto deste sistema considerado por si mesmo (experiências em que as vias aferentes são seccionadas), falar-se-á menos do automatismo de um centro superior do que de coordenação entre centros, e de agrupamentos celulares ou de populações moleculares operando estas conexões: não há uma forma ou uma boa estrutura que se impõe, nem de fora nem de cima, mas antes uma articulação de dentro, como se moléculas oscilantes, passassem de um centro heterogêneo a outro para assegurar a dominância de um deles. Isso exclui evidentemente a relação linear de um centro com o outro, em proveito de pacotes de relações pilotadas pelas moléculas.
O funcionamento do sistema nervoso é, destarte, a expressão de sua estrutura de conexões – o comportamento surge de acordo com o modo como se articulam no organismo suas relações internas de atividade, uma vez que o comportamento dos seres vivos não é uma invenção do sistema nervoso e não está exclusivamente ligado a ele. O que a presença do sistema nervoso faz é expandir o domínio de condutas possíveis ao dotar o organismo de uma estrutura consideravelmente versátil e plástica.
A arquitetura fundamental do sistema nervoso é universal, o que se diferencia é a forma como a rede geradora de correlações sensório-motoras se implementa, pois os neurônios e conexões variam de uma espécie animal para outra. É em referência aos organismos móveis – não só baseiam sua reprodução no movimento, como também sua alimentação e modos de interação com o meio – que o sistema nervoso adquire importância. Ele, como parte que é de um organismo, funciona com determinação estrutural. Portanto, os estados de atividade neuronal deflagrados por diferentes perturbações estão determinados em cada pessoa por sua estrutura individual, e não pelas características do agente perturbador.
É por meio de sua presença física que os neurônios acoplam, de muitos modos distintos, grupos celulares que de outra maneira só poderiam acoplar-se pela circulação geral dos humores internos do organismo. A presença física de um neurônio permite o transporte de substâncias entre duas regiões por meio de um caminho muito específico, que não afeta as células circundantes e sua entrega local. A cada momento, o sistema nervoso está funcionando segundo múltiplos ciclos internos de interações neuronais numa mutação incessante. Essa incomensurável atividade é superposta e modulada pelas modificações na superfície sensorial devido a perturbações que são independentes do organismo – as estruturas estão numa relação de efeito mútuo e não de simples seqüencialidade.
Deste modo, o sistema nervoso no que se refere à sua organização é dotado de uma clausura operacional (está constituído de tal maneira que quaisquer que sejam suas mudanças, estas geram outras modificações dentro dele mesmo). Daí se segue que todo conhecer é fazer, com correlações sensório-efetoras nos domínios de acoplamento estrutural em que existe o sistema nervoso. Desse modo, o ambiente não é algo independente do ser vivo ou algo pré-determinado, e sim um background para fatores intrínsecos. E, conseqüentemente, não pode ser compreendido independentemente da ontogênese dos organismos.
O processo do conhecer é caracterizado por uma perspectivação contínua que não pode ser adequadamente fechada num conjunto de regras e de pressupostos, pois depende da ação e do histórico de interações; é um mundo de significados de que nos apoderamos por imitação e que se torna parte integrante do nosso mundo preexistente. Mais ainda, não podemos nos excluir do mundo para comparar o seu conteúdo com as suas representações em razão de estarmos imersos nele. Assim sendo, a mente que observa o mundo, atua nele de modo que determina a própria observação. E é por isso que não se vai achar o sentido de si nos estados mentais ou nas possíveis conexões entre estados cerebrais e estados mentais. Ele não está lá porque ele não existe lá. Ele existe incorporado no mundo, atuante no mundo, emergente pelo mundo – em seu mundo.
A mente (singularização do cérebro) é, por conseguinte, um aspecto da interação entre a pessoa e o ambiente, de tal maneira que, no ato de conhecer algo, nem o objeto conhecido, nem sua descrição simbólica podem ser especificados à margem do próprio processo de conhecer e das conclusões a que chegamos de tal processo. A cognição desdobra-se entre a mente, o corpo, a atividade e os ambientes organizados culturalmente. Já a consciência é distribuída entre os cérebros e os ambientes físicos e simbólicos – tanto naturais como artificiais.

Em suma, estes são os fatos apurados pelas ciências da cognição:

1. Todas as variedades de pensamentos e atividades mentais são cumpridas no cérebro por processos de processamento de informação paralelos e distribuídos.
2. A informação que circula no sistema nervoso está sob contínua revisão editorial.
3. Nós (o suposto centro metadecisor) não experienciamos diretamente o que fisicamente acontece nas terminações sensoriais do sistema nervoso, mas o resultado destes processos editoriais.

Porém, estes fatos consensuais são normalmente seguidos de más assunções tácitas:

1. A idéia de que basta um conteúdo ter sido discriminado para ter que definitivamente entrar no medium da consciência (como se a discriminação de conteúdo fosse necessariamente precursora da re-apresentação do conteúdo discriminado à consideração de um “discriminador central”).
Contudo, uma larga parte da base da consciência é pré-reflexiva, não-conceitual, pré-noética e afetiva, uma vez que o volume de informação que o cérebro assimila enquanto interagimos com o mundo é ínfimo, todo o resto sendo formado de informações que o próprio cérebro fornece para preencher as lacunas da percepção.

2. A idéia de que as propriedades temporais dos estados discriminativos (que são determináveis no cérebro) gerariam as propriedades temporais das experiências subjetivas.
Todavia, é sempre uma questão em aberto saber se um conteúdo cognitivo que foi fixado virá a ser consciente. Por isso é mistificador perguntar quando é que ele se torna consciente e enganoso supor que a ordem temporal da discriminação é o que fixa a ordem subjetiva na experiência.
Se pensarmos, vemos que o motivo idealista é normalmente espacializado: o ‘interior’ solipsista é precisamente uma espacialização. Mas o hipotético solipsista pensaria ainda temporalmente (estaria desligado da fisicalidade enquanto espacialidade, mas não da temporalidade, que seria então “primeira” na consciência). É indesmentível que nos é mais fácil admitir que o espaço no cérebro (os neurônios do meu córtex visual) representa o espaço fora do cérebro (esta sala, espaço-representado, que é obviamente outro em relação ao espaço da representação) do que pensar assim em relação ao tempo. Nós temos antes a inclinação a pensar que tempo só pode ser representado com tempo – não pensamos que há algo colorido no cérebro que representa cores, nem que há algo sonoro que representa sons, mas facilmente ajuizamos que só tempo pode representar tempo.

Nenhum comentário: