terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Heráclito e o Devir


As datas do nascimento e da morte de Heráclito são desconhecidas. Sabe-se, porém, que atingiu o acme de sua existência na época da 69a. Olimpíada, entre 504 e 500 a.C. Isto é suficiente para situá-lo uma geração após Xenófanes, ao qual se opôs, e uma geração antes de Parmênides, o seu principal opositor. De sua vida, pouco se conhece; supõe-se que tenha pertencido à aristocracia de Éfeso e que seus antepassados foram os fundadores da cidade. Mas parece que Heráclito abdicou dos seus direitos de participar do governo da cidade. Chamavam-no de orgulhoso, pois desprezava seus concidadãos e levava uma vida à parte. (BORNHEIM, 1998;p. 35)


Foi o desenvolvimento da filologia no século XIX que trouxe de volta, com vigor extraordinário, a palavra de Heráclito. Voltado para o estudo dos grandes tragediólogos, Nietzsche reencontra, em seus estudos clássicos, os "pré-socráticos". Compreendeu - à luz de um saber lingüístico incomparável - o quanto as traduções traíram o pensamento de Heráclito e de outros pensadores inaugurais, e quão impossível era continuar aceitando a visão tradicional. Filólogo e filósofo, ele reunia as raras condições que lhe permitiram repensar a cultura ocidental e denunciar o indevido predomínio da racionalidade platônico-aristotélica inserida nos dogmas cristãos.
No começo do século XX, um outro helenista, Hermann Diels, através de um hercúleo esforço de pesquisa filológica, reuniu extensa documentação e publicou uma obra de peso: Os Fragmentos Pré-Socráticos. Um clássico indispensável que provocou uma enorme quantidade de estudos sobre os primeiros pensadores.
Estes famosos fragmentos de Heráclito são cento e vinte e seis frases, fulgurantes como relâmpagos, cortantes como uma navalha. Não são pedaços retirados de um texto linear. Nasceram - sobre isto a crítica hoje concorda - sob a forma de aforismos.

O dom real de Heráclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e hostil para com o outro modo de representação que se efetiva em conceitos e combinações lógicas, portanto, para a razão, e parece ter prazer em poder contradizê-la com alguma verdade alcançada por intuição [...] (NIETZSCHE, 1995;p. 19)

Heráclito marca a separação de duas eras fundamentais. Ele é o movimento de transição entre a filosofia jônica da natureza e a teoria anaxagórica do nous, que dá início à separação entre corpo e alma.
Seu discurso é como um jogo de luz e sombras que não cabe em uma linguagem simplória, exigindo de Heráclito os atritos verbais com que tentou dar testemunho das contradições das coisas mesmas, sua conjuntura, seu equilíbrio imanente, feito de tensões, que é luta e harmonia ao mesmo tempo. No seu entender as transformações se dão segundo medidas e está ao alcance do homem captá-las. Por esse motivo, conceder à razão a possibilidade de conhecer o que se transforma é conceber uma racionalidade também dinâmica, daí sua dialética paradoxal.
A lógica formal distingue duas formas de oposição de conceitos, ora como contrários (branco e negro), ora como contraditórios (branco e não-branco). Heráclito não trabalha com esse modelo, ele trabalha com a harmonia e não identidade entre contrários. Apesar de surgir algo como uma “unidade”, as oposições não se dissolvem, elas sobrevivem enquanto tal, mantendo-se o conflito e a negação. Esse movimento dos opostos cria uma hierarquia, e esta, configura uma ordem.
Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos lutadores, mas não põem termo à guerra: a luta persiste pela eternidade afora. Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna. (NIETZSCHE, 1995;p. 21)


Logos é filho de Éris; sobre esta figura da mitologia grega Brandão (1993) afirma: Éris é, em princípio, “o ardor no combate, a luta, a disputa, a querela, a rivalidade, a discórdia”. Aparece já personificada em Homero e Hesíodo.” (1993;p.355)
Sendo o Logos da linhagem de Éris, podemos dizer que o discurso (significado literal da palavra grega) é fruto da disputa, da luta, do combate. Essa propriedade paradoxal – o discurso como fruto da disputa – é da ordem da condição humana. Aludimos ao fato de que o logos grego passa pelo debate, pela argumentação, assim como o experimentavam na democracia grega. Assuntos comuns são tratados no debate, a batalha de palavras que gera o bem comum. O discurso sustenta, congrega, une, critica, vigia, reina. É a condição sine qua non para a existência da democracia: o reconhecimento de que nenhum dos cidadãos possui a verdade, pois de posse dela o debate desvaneceria, uma vez que este é a busca pela concórdia.
Logos não se contrapõe a physis, como mais tarde o pensamento se oporá à natureza, o sujeito aos objetos, em busca da objetividade do conhecimento. Em Heráclito, assim como os outros filósofos inaugurais, Physis representa a realidade subjacente às coisas de nossa experiência, indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desabrochar que surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Em nossos dias, a natureza se contrapõe ao psíquico. Mas para os gregos, o psíquico também pertence à physis. Esta sua importante dimensão pode ser mais bem compreendida a partir de sua gênese mitológica, pois os deuses gregos não são entidades transcendentes, e sim, parte integrante da natureza, exteriorizações magnificadas das peculiaridades do altivo povo grego.
Logos significa uma reunião de coisas sob determinado critério. Ele não se restringe, entretanto, à ordenação dos fenômenos, mas estende vínculos, com o mesmo vigor, entre palavras. Surge assim o discurso verbal. Sem logos não há discurso; há, quando muito, amontoado caótico de palavras. Sem o discurso verbal, estaríamos desamparados de recursos para nos referir ao logos.


É sábio que os que ouviram, não a mim, mas as minhas palavras (logos), reconheçam que todas as coisas são um. (HERÁCLITO, frag.50)

Aqui estão as bases do pensamento de Heráclito. Neste fragmento afirmam-se pelo menos três grandes princípios. Em primeiro lugar, vem a primazia da escuta como forma de definição do humano: nada se ouve sem decisão de ouvir. Ficar atento a discursos sedutores é cômodo. Perceber os movimentos do logos, que age no silêncio, no espaço que se interpõe entre as palavras, que atua no conflito, que reúne - requer atenção de despertos. Sendo invisível, ele se dirige aos ouvidos. Mas o que é que ele diz? Diz a ordem, o encaixe, a aproximação, a harmonia das partes, diz que todas as coisas constituem uma multiplicidade cambiante e concordante.
É preciso, para escutar, ir além da identificação dos sons, recolhendo os significados do discurso e pondo diante de si a trama de sentidos que emana imediatamente do ato. Todas as tentativas futuras de recuperação serão infiéis, artificiais, forçadas e forjadas, exercício a posteriori de se refazer algo que já não está ocorrendo. Por isso, a interpretação será sempre trabalho sobre um resíduo instalado, enquanto que a vivência é apreensão e experimentação do logos.
Ouvir ao logos nada tem de cartesianismo. Se escutarmos o “eu”, daremos ouvidos ao mundo enganoso de suas falsas impressões e tumultuados anseios. É a esta audição equivocada à qual Heráclito diz “não”. Esse modo de escuta acaba por constituir o ruído que ensurdece o homem para a escuta do logos. Mas se o homem calar a interferência do “eu”, poderá ouvir o que o logos lhe diz.
Em segundo lugar, temos a primazia do dizer do logos e não do dizer do filósofo ou de um eu subjetivo. É ao logos enquanto sabedoria da natureza que devemos dar ouvidos e não à opinião dos homens; deve-se escutar, observar e analisar a natureza e não as idiossincrasias de um eu enunciador.
O logos profere-se a si mesmo. Ainda que esquecido, desprezado ou ignorado, ele governa. Articulado em nós e fora de nós, nele vivemos e convivemos. Ninguém ignora de todo. A mera informação dos sentidos, embora precária, ainda é saber. Todo saber, contudo, está mesclado de não-saber. Enquanto percorremos o caminho do conhecimento simultaneamente enveredamos pelo descaminho do sujeito e proferimos estes discursos parciais, necessários por serem eles que nos mantêm em marcha; precários, porque o não-dito supera em muito o que se diz.
O saber separa-se por sua própria natureza, assegurando que não é coisa entre coisas, nem coisa além das coisas. Não sendo coisa, ele arma relações entre as coisas, indica a função das palavras na sintaxe. É coesão, sentido não-substancial do que aparece.
Em terceiro lugar, vem a primazia do uno, de modo que ao se escutar esse dizer do logos, é sábio concordar (homologar) e buscar a unidade para compreender a coerência subjacente expressa no logos como princípio unificador.
Para Heráclito, tal unidade é projeção de uma escuta e construção de um dizer. A rigor, o que aparece são apenas índices, e o Todo, o Uno, a harmonia, não passam da união de elementos ocultos que vamos desvelando na escuta. A coerência, a harmonia e as relações de sentido não são dadas na superfície e sim no escutar. Não somos lineares por natureza, não somos uma seqüência de racionalidade nem somos explicitude. Contudo, é nessa diversidade de modos de ser que nos constituímos como unidade simbólica.
Assim, o logos é tanto unidade como multiplicidade e este é seu caráter essencial: a convergência de muitos cursos, a sobreposição de correntes, que ao discorrerem, convergem e divergem no fluir que se refaz.
Outro aspecto central na filosofia de Heráclito é a idéia contida no fragmento 54, que nos diz: “A harmonia invisível é mais forte que a visível.”
Com isto, torna-se patente que a unidade das coisas se dá sob a superfície e não se acha visível. É fruto da escuta do logos oculto. Para ser bem entendido, o fragmento 54 deve ser interpretado na relação com o fragmento 123 que diz: “A natureza ama esconder-se”. Pois esta tende ao encobrimento e furta-se à evidência imediata.
O invisível faz parte dessa epistemologia da mesma forma que o visível, ou seja, é preciso ver as coisas e o vazio entre as coisas. A vista nos engana quando ela se liga de forma demasiadamente estreita àquilo que é diretamente visível, impedindo-nos de enxergar. Pois o horizonte do visível permanece invisível e o visível não passa de um fragmento do invisível, embora seja através do visível que o invisível se presentifica.
Isso não deve levar ao equívoco de entender Heráclito como um autor estruturalista, pois o estruturalismo não somente privilegia o invisível (as estruturas inconscientes) mas, pura e simplesmente, ignora o visível. Para o estruturalismo, a estrutura é determinante (causalidade estrutural), enquanto que para Heráclito, se há uma determinação ela está no fogo, que é antes uma “força motriz”, jamais um plano inconsciente. Além do mais, o estruturalismo contém implícita uma metafísica, um significado transcendental, visto que seu centro está fora do campo. Heráclito não considera nenhum significado transcendental, como pode ser visto no fragmento 45: “Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu Logos”. Ele, diferentemente do estruturalismo, transcende o campo reduzido da linguagem e caminha na direção do inapreensível ao falar na captura do instável e na potência do invisível para produzir o movimento.

Um comentário:

Flor Baez disse...

Você sempre me surpreende!
Precisamos conversar!
Beijos de luz!