quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

As Artesãs


Saboroso dia de contemplação

De suaves e exatos movimentos

Que enfeitiçam.


Encantador estado de desfrute

De plenos momentos de criação.


Nessa atmosfera de feminilidade

Exalada por inspiradas obras

E artífices em seu sereno labor,

Torno-me personagem

E não criador.

Vontade de Poder e Biologia do Conhecer


A vontade de poder está presente nos numerosos seres vivos microscópicos que formam o corpo, na medida em que cada um deles quer prevalecer na relação com os demais. Encontra-se, pois, em todo ser vivo, espalhada no organismo, atuando nos diminutos elementos que o constituem. Assim deixa de ter sentido, em termos fisiológicos, a idéia de um aparelho neurocerebral responsável pelo querer, pois todas as formas orgânicas tomam parte não só no querer, mas no sentir e no pensar – o cérebro é apenas um enorme aparelho de centralização. A relação entre eles é de tal ordem que, no querer, já se acham embutidos o sentir e o pensar, de modo que pensamento, sentimento e vontade aparecem como indissociáveis. Contudo, Nietzsche não se limita a afirmar que os processos psicológicos têm base neurofisiológica; procura, antes, suprimir a distinção entre fisiologia e psicologia.
E, se do ponto de vista fisiológico, deixa de ter sentido a idéia de um aparelho neurocerebral responsável pelo querer, tampouco faz sentido, em termos filosóficos, considerar a vontade uma faculdade do homem, ao lado de outras como a imaginação, o entendimento ou a razão. Ao ser humano não é facultado exercer ou não a vontade; ela não apresenta caráter intencional algum.
As ciências da cognição e as neurociências com suas explorações empíricas da mente humana constatam, de forma irrefutável, a ausência de um centro metadecisor localizado no cérebro ao qual se possa atribuir a responsabilidade pela consciência ou pela consistência ontológica de um sujeito do conhecimento. O cérebro começa a se preparar para iniciar uma ação mais que três décimos de segundo antes de decidirmos conscientemente agir, por isso, pesar das aparências, não é a mente consciente que decide desempenhar uma ação: a decisão é tomada inconscientemente.
O sujeito, assim como o sentido de si e, principalmente, a consciência, são resultados emergentes de processos que operam também em contextos bem localizados no tecido social. O sujeito que conhece é o resultado de formações históricas e sociais, emerge, portanto, de um conjunto de regras e relações que operam em seu corpo e o fazem existir como sujeito do conhecimento.
O sentido de si, conseqüentemente, emerge das formas, das regras, dos jogos de verdade, de estratégias e forças a operar sem intencionalidade, sem finalidade e sem sentido. Um suposto sentido que o observador enxerga no sentido de si emerge de um operar maquinal de forças sem nenhuma intenção. O mesmo vale para o sistema nervoso, que é uma máquina a executar, sem intenções, sem finalidades (sem elaborar representações) operações determinadas pela sua organização enquanto sistema auto-engendrante e auto-referencial.
Isso, porque o que chamamos de centro funcional coloca em jogo não uma localização, mas a repartição de toda uma população de neurônios selecionados no conjunto do sistema nervoso central, como numa "rede de fiação". Conseqüentemente, no conjunto deste sistema considerado por si mesmo (experiências em que as vias aferentes são seccionadas), falar-se-á menos do automatismo de um centro superior do que de coordenação entre centros, e de agrupamentos celulares ou de populações moleculares operando estas conexões: não há uma forma ou uma boa estrutura que se impõe, nem de fora nem de cima, mas antes uma articulação de dentro, como se moléculas oscilantes, passassem de um centro heterogêneo a outro para assegurar a dominância de um deles. Isso exclui evidentemente a relação linear de um centro com o outro, em proveito de pacotes de relações pilotadas pelas moléculas.
O funcionamento do sistema nervoso é, destarte, a expressão de sua estrutura de conexões – o comportamento surge de acordo com o modo como se articulam no organismo suas relações internas de atividade, uma vez que o comportamento dos seres vivos não é uma invenção do sistema nervoso e não está exclusivamente ligado a ele. O que a presença do sistema nervoso faz é expandir o domínio de condutas possíveis ao dotar o organismo de uma estrutura consideravelmente versátil e plástica.
A arquitetura fundamental do sistema nervoso é universal, o que se diferencia é a forma como a rede geradora de correlações sensório-motoras se implementa, pois os neurônios e conexões variam de uma espécie animal para outra. É em referência aos organismos móveis – não só baseiam sua reprodução no movimento, como também sua alimentação e modos de interação com o meio – que o sistema nervoso adquire importância. Ele, como parte que é de um organismo, funciona com determinação estrutural. Portanto, os estados de atividade neuronal deflagrados por diferentes perturbações estão determinados em cada pessoa por sua estrutura individual, e não pelas características do agente perturbador.
É por meio de sua presença física que os neurônios acoplam, de muitos modos distintos, grupos celulares que de outra maneira só poderiam acoplar-se pela circulação geral dos humores internos do organismo. A presença física de um neurônio permite o transporte de substâncias entre duas regiões por meio de um caminho muito específico, que não afeta as células circundantes e sua entrega local. A cada momento, o sistema nervoso está funcionando segundo múltiplos ciclos internos de interações neuronais numa mutação incessante. Essa incomensurável atividade é superposta e modulada pelas modificações na superfície sensorial devido a perturbações que são independentes do organismo – as estruturas estão numa relação de efeito mútuo e não de simples seqüencialidade.
Deste modo, o sistema nervoso no que se refere à sua organização é dotado de uma clausura operacional (está constituído de tal maneira que quaisquer que sejam suas mudanças, estas geram outras modificações dentro dele mesmo). Daí se segue que todo conhecer é fazer, com correlações sensório-efetoras nos domínios de acoplamento estrutural em que existe o sistema nervoso. Desse modo, o ambiente não é algo independente do ser vivo ou algo pré-determinado, e sim um background para fatores intrínsecos. E, conseqüentemente, não pode ser compreendido independentemente da ontogênese dos organismos.
O processo do conhecer é caracterizado por uma perspectivação contínua que não pode ser adequadamente fechada num conjunto de regras e de pressupostos, pois depende da ação e do histórico de interações; é um mundo de significados de que nos apoderamos por imitação e que se torna parte integrante do nosso mundo preexistente. Mais ainda, não podemos nos excluir do mundo para comparar o seu conteúdo com as suas representações em razão de estarmos imersos nele. Assim sendo, a mente que observa o mundo, atua nele de modo que determina a própria observação. E é por isso que não se vai achar o sentido de si nos estados mentais ou nas possíveis conexões entre estados cerebrais e estados mentais. Ele não está lá porque ele não existe lá. Ele existe incorporado no mundo, atuante no mundo, emergente pelo mundo – em seu mundo.
A mente (singularização do cérebro) é, por conseguinte, um aspecto da interação entre a pessoa e o ambiente, de tal maneira que, no ato de conhecer algo, nem o objeto conhecido, nem sua descrição simbólica podem ser especificados à margem do próprio processo de conhecer e das conclusões a que chegamos de tal processo. A cognição desdobra-se entre a mente, o corpo, a atividade e os ambientes organizados culturalmente. Já a consciência é distribuída entre os cérebros e os ambientes físicos e simbólicos – tanto naturais como artificiais.

Em suma, estes são os fatos apurados pelas ciências da cognição:

1. Todas as variedades de pensamentos e atividades mentais são cumpridas no cérebro por processos de processamento de informação paralelos e distribuídos.
2. A informação que circula no sistema nervoso está sob contínua revisão editorial.
3. Nós (o suposto centro metadecisor) não experienciamos diretamente o que fisicamente acontece nas terminações sensoriais do sistema nervoso, mas o resultado destes processos editoriais.

Porém, estes fatos consensuais são normalmente seguidos de más assunções tácitas:

1. A idéia de que basta um conteúdo ter sido discriminado para ter que definitivamente entrar no medium da consciência (como se a discriminação de conteúdo fosse necessariamente precursora da re-apresentação do conteúdo discriminado à consideração de um “discriminador central”).
Contudo, uma larga parte da base da consciência é pré-reflexiva, não-conceitual, pré-noética e afetiva, uma vez que o volume de informação que o cérebro assimila enquanto interagimos com o mundo é ínfimo, todo o resto sendo formado de informações que o próprio cérebro fornece para preencher as lacunas da percepção.

2. A idéia de que as propriedades temporais dos estados discriminativos (que são determináveis no cérebro) gerariam as propriedades temporais das experiências subjetivas.
Todavia, é sempre uma questão em aberto saber se um conteúdo cognitivo que foi fixado virá a ser consciente. Por isso é mistificador perguntar quando é que ele se torna consciente e enganoso supor que a ordem temporal da discriminação é o que fixa a ordem subjetiva na experiência.
Se pensarmos, vemos que o motivo idealista é normalmente espacializado: o ‘interior’ solipsista é precisamente uma espacialização. Mas o hipotético solipsista pensaria ainda temporalmente (estaria desligado da fisicalidade enquanto espacialidade, mas não da temporalidade, que seria então “primeira” na consciência). É indesmentível que nos é mais fácil admitir que o espaço no cérebro (os neurônios do meu córtex visual) representa o espaço fora do cérebro (esta sala, espaço-representado, que é obviamente outro em relação ao espaço da representação) do que pensar assim em relação ao tempo. Nós temos antes a inclinação a pensar que tempo só pode ser representado com tempo – não pensamos que há algo colorido no cérebro que representa cores, nem que há algo sonoro que representa sons, mas facilmente ajuizamos que só tempo pode representar tempo.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Doce Êxtase


Tudo é tão claro; não há motivos
Para quaisquer apreensões.
Tudo foi dito; tudo é livre,
Tudo flui e tudo não é
Como se havia previsto,
Pois tudo se transmuta
A todo momento.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

A Sexualidade na Contemporaneidade


As paixões tornam-se más e pérfidas quando são consideradas más e pérfidas. Desse modo, o cristianismo conseguiu transformar Eros e Afrodite – grandes poderes passíveis de idealização – em espíritos e gênios infernais, mediante os tormentos que fez surgir na consciência dos crentes quando há excitação sexual. Não é algo terrível transformar sensações regulares e necessárias em fonte de miséria interior, e assim pretender tornar a miséria interior, em cada pessoa, algo regular e necessário? Nietzsche - Aurora, p.59


Por fim, essa demonização de Eros teve um desfecho de comédia: o “demônio” Eros veio a se tornar mais interessante, para as pessoas, do que todos os anjos e santos, graças ao murmúrio e sigilo da Igreja nas coisas eróticas: seu efeito até em nossa época, foi tornar a história de amor o único verdadeiro interesse comum a todos os círculos – num exagero incompreensível para a Antiguidade, e que um dia dará lugar à risada. Nietzsche - Aurora, p.60


"O cristianismo perverteu a Eros; este não morreu, mas degenerou-se, tornou-se um vício." Nietzsche - Para Além do Bem e do Mal, p.76



Apesar da revolução sexual dos anos 60 (devemos ter em mente que a década de 20 nos Estados Unidos também foi de grande liberdade até a Grande Depressão), que se insere num processo sócio-político mais amplo, mas que teve no feminismo (primeiro movimento social a colocar em pauta as questões de gênero) seu grande propulsor (sem a libertação das mulheres não seria possível a transformação na sexualidade), ter se degenerado em razão do princípio do desempenho (Marcuse, Eros e a Civilização) que se mostra cada vez mais forte na Civilização Ocidental, penso que ainda há espaço para uma mudança de paradigma.

Na atualidade, a vivência da sexualidade está muito ligada expectativas irreais de performance (alimentadas pela mídia por razões mercantis), pela reprodução das relações comerciais (relacionamentos tópicos e funcionais) e uma aguda genitalização (em detrimento do resto do corpo). Não há uma entrega genuína, um interesse no aprofundamento dos vínculos. Grande parte das pessoas vive numa velocidade que impede qualquer estabilidade e por conseguinte, a possibilidade de uma intensa experiência sexual com o outro.

Porém, essas mesmas pessoas, na maior parte das vezes, nutrem fantasias românticas ideais (parceiros perfeitos e relacionamentos sem conflitos), e isso aliado à incapacidade de lidar com frustrações e o temor do compromisso é que as impedem de conseguir parcerias reais e satisfatórias. Enfim, parafraseando Platão, “muitos empunham o tirso, mas poucos são os bacantes”.

Evoé, Baco!



Intróito


Furor indômito, obscuro,
Discípulo do sábio Sileno,
Rebento de Zeus soberano;
Tu afrontaste toda moral
E rompeste todo grilhão.

Adoração plena do êxtase,
Manifestação do excesso
E essência do sublime.

Sentimento de irrestrita
Afirmação e absoluta
Desindividuação.

Louvado seja!!!


Rapsódia I

Rasgo a lúgubre noite
Que adornada pela lua
Opulenta e sangüínea,
Evoca sonhos esquecidos
Enchendo-me de excitação
E expectativa acerca do porvir.

Adentro uma exuberante ermida
Onde brumas irrompem lentamente
E inicio o extático e lisérgico rito
Envolvendo ervas e cogumelos.

Distante do Ideal Ascético
E da insídia do Ressentimento,
Bem como da Má-Consciência,
Maximizo meus sentidos
Tornando meu organismo
Substrato da Sexualidade
E concomitantemente,
Provocando uma postura
Subversiva e erótica
Contra a sobre- repressão.


Rapsódia II

Respondo ao irresistível clamor
Que do limiar do Real com o Simbólico
Testa minha aspiração pelo infinito
Abrindo as portas da percepção
E demandando a asserção
Absoluta e extática da Vida,
Imergindo-me na transversalidade
Constitutiva dos acontecimentos
Ao tornar o ato de conhecer
Um processo semiótico contínuo.

Destarte, vivo a sina de Prometeu
Ao vergastar o delírio metafísico
Infundindo eloqüente ilustração
Aos domínios do Inconsciente.

Por fim, farto do Status Quo,
Vivo, exultante, a morte Dele
E num paroxismo de Prazer,
Faço da crença, Suspeição,
Do maniqueísmo, Diversidade
E do ilusório espírito, Corpo.


Rapsódia III


Altipotentes e fecundos impulsos
De superação, domínio e expansão;
Sois antídoto ao veneno do niilismo
Por induzir ao limite meu poder.

Exerço, de tal modo, o Desejo,
Que este, rumo à transvaloração,
Enriquece e liberta meus juízos
Abismados em inúteis aporias
E, num genuíno fenomenalismo,
Perspectivo tudo o que alcanço.

Por fim, domestico meus demônios
Ao potencializar minha Vontade,
Que, soberana, feroz e intrépida,
Escapa do suplício de Tântalo
Imergindo-me na pura imanência
De uma experimental e empírica
Arqueologia de sentidos e valores,
Engendrando um entendimento
Profundo, intenso e materialista
Da inescapável tragédia humana.

Heráclito e o Devir


As datas do nascimento e da morte de Heráclito são desconhecidas. Sabe-se, porém, que atingiu o acme de sua existência na época da 69a. Olimpíada, entre 504 e 500 a.C. Isto é suficiente para situá-lo uma geração após Xenófanes, ao qual se opôs, e uma geração antes de Parmênides, o seu principal opositor. De sua vida, pouco se conhece; supõe-se que tenha pertencido à aristocracia de Éfeso e que seus antepassados foram os fundadores da cidade. Mas parece que Heráclito abdicou dos seus direitos de participar do governo da cidade. Chamavam-no de orgulhoso, pois desprezava seus concidadãos e levava uma vida à parte. (BORNHEIM, 1998;p. 35)


Foi o desenvolvimento da filologia no século XIX que trouxe de volta, com vigor extraordinário, a palavra de Heráclito. Voltado para o estudo dos grandes tragediólogos, Nietzsche reencontra, em seus estudos clássicos, os "pré-socráticos". Compreendeu - à luz de um saber lingüístico incomparável - o quanto as traduções traíram o pensamento de Heráclito e de outros pensadores inaugurais, e quão impossível era continuar aceitando a visão tradicional. Filólogo e filósofo, ele reunia as raras condições que lhe permitiram repensar a cultura ocidental e denunciar o indevido predomínio da racionalidade platônico-aristotélica inserida nos dogmas cristãos.
No começo do século XX, um outro helenista, Hermann Diels, através de um hercúleo esforço de pesquisa filológica, reuniu extensa documentação e publicou uma obra de peso: Os Fragmentos Pré-Socráticos. Um clássico indispensável que provocou uma enorme quantidade de estudos sobre os primeiros pensadores.
Estes famosos fragmentos de Heráclito são cento e vinte e seis frases, fulgurantes como relâmpagos, cortantes como uma navalha. Não são pedaços retirados de um texto linear. Nasceram - sobre isto a crítica hoje concorda - sob a forma de aforismos.

O dom real de Heráclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e hostil para com o outro modo de representação que se efetiva em conceitos e combinações lógicas, portanto, para a razão, e parece ter prazer em poder contradizê-la com alguma verdade alcançada por intuição [...] (NIETZSCHE, 1995;p. 19)

Heráclito marca a separação de duas eras fundamentais. Ele é o movimento de transição entre a filosofia jônica da natureza e a teoria anaxagórica do nous, que dá início à separação entre corpo e alma.
Seu discurso é como um jogo de luz e sombras que não cabe em uma linguagem simplória, exigindo de Heráclito os atritos verbais com que tentou dar testemunho das contradições das coisas mesmas, sua conjuntura, seu equilíbrio imanente, feito de tensões, que é luta e harmonia ao mesmo tempo. No seu entender as transformações se dão segundo medidas e está ao alcance do homem captá-las. Por esse motivo, conceder à razão a possibilidade de conhecer o que se transforma é conceber uma racionalidade também dinâmica, daí sua dialética paradoxal.
A lógica formal distingue duas formas de oposição de conceitos, ora como contrários (branco e negro), ora como contraditórios (branco e não-branco). Heráclito não trabalha com esse modelo, ele trabalha com a harmonia e não identidade entre contrários. Apesar de surgir algo como uma “unidade”, as oposições não se dissolvem, elas sobrevivem enquanto tal, mantendo-se o conflito e a negação. Esse movimento dos opostos cria uma hierarquia, e esta, configura uma ordem.
Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos lutadores, mas não põem termo à guerra: a luta persiste pela eternidade afora. Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna. (NIETZSCHE, 1995;p. 21)


Logos é filho de Éris; sobre esta figura da mitologia grega Brandão (1993) afirma: Éris é, em princípio, “o ardor no combate, a luta, a disputa, a querela, a rivalidade, a discórdia”. Aparece já personificada em Homero e Hesíodo.” (1993;p.355)
Sendo o Logos da linhagem de Éris, podemos dizer que o discurso (significado literal da palavra grega) é fruto da disputa, da luta, do combate. Essa propriedade paradoxal – o discurso como fruto da disputa – é da ordem da condição humana. Aludimos ao fato de que o logos grego passa pelo debate, pela argumentação, assim como o experimentavam na democracia grega. Assuntos comuns são tratados no debate, a batalha de palavras que gera o bem comum. O discurso sustenta, congrega, une, critica, vigia, reina. É a condição sine qua non para a existência da democracia: o reconhecimento de que nenhum dos cidadãos possui a verdade, pois de posse dela o debate desvaneceria, uma vez que este é a busca pela concórdia.
Logos não se contrapõe a physis, como mais tarde o pensamento se oporá à natureza, o sujeito aos objetos, em busca da objetividade do conhecimento. Em Heráclito, assim como os outros filósofos inaugurais, Physis representa a realidade subjacente às coisas de nossa experiência, indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desabrochar que surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Em nossos dias, a natureza se contrapõe ao psíquico. Mas para os gregos, o psíquico também pertence à physis. Esta sua importante dimensão pode ser mais bem compreendida a partir de sua gênese mitológica, pois os deuses gregos não são entidades transcendentes, e sim, parte integrante da natureza, exteriorizações magnificadas das peculiaridades do altivo povo grego.
Logos significa uma reunião de coisas sob determinado critério. Ele não se restringe, entretanto, à ordenação dos fenômenos, mas estende vínculos, com o mesmo vigor, entre palavras. Surge assim o discurso verbal. Sem logos não há discurso; há, quando muito, amontoado caótico de palavras. Sem o discurso verbal, estaríamos desamparados de recursos para nos referir ao logos.


É sábio que os que ouviram, não a mim, mas as minhas palavras (logos), reconheçam que todas as coisas são um. (HERÁCLITO, frag.50)

Aqui estão as bases do pensamento de Heráclito. Neste fragmento afirmam-se pelo menos três grandes princípios. Em primeiro lugar, vem a primazia da escuta como forma de definição do humano: nada se ouve sem decisão de ouvir. Ficar atento a discursos sedutores é cômodo. Perceber os movimentos do logos, que age no silêncio, no espaço que se interpõe entre as palavras, que atua no conflito, que reúne - requer atenção de despertos. Sendo invisível, ele se dirige aos ouvidos. Mas o que é que ele diz? Diz a ordem, o encaixe, a aproximação, a harmonia das partes, diz que todas as coisas constituem uma multiplicidade cambiante e concordante.
É preciso, para escutar, ir além da identificação dos sons, recolhendo os significados do discurso e pondo diante de si a trama de sentidos que emana imediatamente do ato. Todas as tentativas futuras de recuperação serão infiéis, artificiais, forçadas e forjadas, exercício a posteriori de se refazer algo que já não está ocorrendo. Por isso, a interpretação será sempre trabalho sobre um resíduo instalado, enquanto que a vivência é apreensão e experimentação do logos.
Ouvir ao logos nada tem de cartesianismo. Se escutarmos o “eu”, daremos ouvidos ao mundo enganoso de suas falsas impressões e tumultuados anseios. É a esta audição equivocada à qual Heráclito diz “não”. Esse modo de escuta acaba por constituir o ruído que ensurdece o homem para a escuta do logos. Mas se o homem calar a interferência do “eu”, poderá ouvir o que o logos lhe diz.
Em segundo lugar, temos a primazia do dizer do logos e não do dizer do filósofo ou de um eu subjetivo. É ao logos enquanto sabedoria da natureza que devemos dar ouvidos e não à opinião dos homens; deve-se escutar, observar e analisar a natureza e não as idiossincrasias de um eu enunciador.
O logos profere-se a si mesmo. Ainda que esquecido, desprezado ou ignorado, ele governa. Articulado em nós e fora de nós, nele vivemos e convivemos. Ninguém ignora de todo. A mera informação dos sentidos, embora precária, ainda é saber. Todo saber, contudo, está mesclado de não-saber. Enquanto percorremos o caminho do conhecimento simultaneamente enveredamos pelo descaminho do sujeito e proferimos estes discursos parciais, necessários por serem eles que nos mantêm em marcha; precários, porque o não-dito supera em muito o que se diz.
O saber separa-se por sua própria natureza, assegurando que não é coisa entre coisas, nem coisa além das coisas. Não sendo coisa, ele arma relações entre as coisas, indica a função das palavras na sintaxe. É coesão, sentido não-substancial do que aparece.
Em terceiro lugar, vem a primazia do uno, de modo que ao se escutar esse dizer do logos, é sábio concordar (homologar) e buscar a unidade para compreender a coerência subjacente expressa no logos como princípio unificador.
Para Heráclito, tal unidade é projeção de uma escuta e construção de um dizer. A rigor, o que aparece são apenas índices, e o Todo, o Uno, a harmonia, não passam da união de elementos ocultos que vamos desvelando na escuta. A coerência, a harmonia e as relações de sentido não são dadas na superfície e sim no escutar. Não somos lineares por natureza, não somos uma seqüência de racionalidade nem somos explicitude. Contudo, é nessa diversidade de modos de ser que nos constituímos como unidade simbólica.
Assim, o logos é tanto unidade como multiplicidade e este é seu caráter essencial: a convergência de muitos cursos, a sobreposição de correntes, que ao discorrerem, convergem e divergem no fluir que se refaz.
Outro aspecto central na filosofia de Heráclito é a idéia contida no fragmento 54, que nos diz: “A harmonia invisível é mais forte que a visível.”
Com isto, torna-se patente que a unidade das coisas se dá sob a superfície e não se acha visível. É fruto da escuta do logos oculto. Para ser bem entendido, o fragmento 54 deve ser interpretado na relação com o fragmento 123 que diz: “A natureza ama esconder-se”. Pois esta tende ao encobrimento e furta-se à evidência imediata.
O invisível faz parte dessa epistemologia da mesma forma que o visível, ou seja, é preciso ver as coisas e o vazio entre as coisas. A vista nos engana quando ela se liga de forma demasiadamente estreita àquilo que é diretamente visível, impedindo-nos de enxergar. Pois o horizonte do visível permanece invisível e o visível não passa de um fragmento do invisível, embora seja através do visível que o invisível se presentifica.
Isso não deve levar ao equívoco de entender Heráclito como um autor estruturalista, pois o estruturalismo não somente privilegia o invisível (as estruturas inconscientes) mas, pura e simplesmente, ignora o visível. Para o estruturalismo, a estrutura é determinante (causalidade estrutural), enquanto que para Heráclito, se há uma determinação ela está no fogo, que é antes uma “força motriz”, jamais um plano inconsciente. Além do mais, o estruturalismo contém implícita uma metafísica, um significado transcendental, visto que seu centro está fora do campo. Heráclito não considera nenhum significado transcendental, como pode ser visto no fragmento 45: “Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu Logos”. Ele, diferentemente do estruturalismo, transcende o campo reduzido da linguagem e caminha na direção do inapreensível ao falar na captura do instável e na potência do invisível para produzir o movimento.